27 de mai. de 2010

Cache-cache

Colagem, hidrocor, nanquim e acrílica sobre papel | 24x34cm

Colagem #3/2010

“Cavalgava bem. Sou uma boa amazona, mas ele era tão bom quanto eu ou até melhor, não sei, naquele dia me pareceu melhor, galopar sem estribos é difícil, e ele galopou grudado no lombo do cavalo até que o perdi de vista. Enquanto esperava contei as guimbas que ele tinha apagado junto da cabana e fiquei com vontade de aprender a fumar. Horas depois, quando voltávamos no carro do meu pai, ele na frente, eu atrás, ele me disse que provavelmente debaixo daquelas terras jazia alguma pirâmide. Lembro que meu pai desviou o olhar da estrada para encará-lo. Pirâmide? É, ele disse, o subsolo deve estar cheio de pirâmides. Meu pai não fez nenhum comentário, eu, do escuro do banco de trás, perguntei por que ele achava isso. Ele não respondeu. Depois começamos a conversar sobre outros assuntos, mas fiquei pensando por que ele terá falado em pirâmides. Fiquei pensando nas pirâmides. Fiquei pensando no pedregal do meu pai, e muito tempo depois, quando não o via mais, cada vez que voltava àquelas terras ermas pensava nas pirâmides enterradas, pensava na única vez que o vira montando a cavalo sobre as pirâmides e também o imaginava na cabana durante o tempo em que ficara sozinho fumando.”

Roberto Bolaño, “Os Detetives Secretos”, pág. 149 - 1999


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“Eu uso óculos escuros pras minhas lágrimas esconder
E quando você vem para o meu lado, ai, as lágrimas começam a correr
E eu sinto aquela coisa no meu peito
Eu sinto aquela grande confusão
Eu sei que eu sou um vampiro que nunca vai ter paz no coração”

Caetano Veloso, "Vampiro" - Composição: Jorge Mautner - 1979
 
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"Quando terminei, não fez nenhum comentário. O que acha?, perguntei. Não sei, falou, e você, o que acha? Eu lhe disse então que achava que poetas eram uns hermafroditas e que só podiam se entender entre eles. Falei: os poetas são. Quis dizer: os poetas somos. Mas ele olhou para mim como se meu rosto não tivesse carne, fosse só uma caveira, olhou para mim sorrindo e disse: não seja cafona, Perla. Só isso. Empalideci, dei um pulo, só conseguiu me afastar um pouco, tentei me levantar e não pude, e durante esse tempo todo ele permaneceu imóvel, olhando para mim e sorrindo para mim, como se do meu rosto houvessem se desprendido a pele, os músculos, a gordura, o sangue, e só restasse o osso amarelo ou branco.

Roberto Bolaño, “Os Detetives Secretos”, pág. 170 - 1999
 

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"Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima"

Paulo Leminski, “Caprichos e Relaxos”, pág. 89 – 1983 

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Durante muito tempo eu não me era. Minha preocupação era “o outro”. Não existia necessariamente algo de filantrópico nisso. Talvez até o contrário. O medo era de decepcionar alguém. De magoar, trair, não merecer a confiança, desrespeitar, e, com isso, ser abandonado. Medo de ficar sozinho no mundo. Eu não existia sem ser através de alguém, sem um duplo, um companheiro. Um espelho.
Cada um que entrava na minha vida trazia a sensação de completude, de estar vivo. E quando ia embora, como a maré que baixa, levava tudo embora. Isso se repetia com amigos, amores, com todos e quaisquer que eu elegia. Cada partida era uma morte. Morri muitas vezes, de várias formas. Um dia, por conta de três, morri sete meses.
Enfim que o tempo, amigo, foi legal comigo e me ensinou algumas coisas. Não me deixo mais morrer por ninguém. Hoje, quem vem, se vai e anda - não me leva. Este que veio, ficou e fez do meu coração residência habitável (com tanta docura) também está indo agora. Mas o que existiu em comum ainda existe. Não encaixoto nada, não escondo fotos, nem apago mensagens, nem finjo que momentos divididos não aconteceram. Aconteceram e foram muito bem acontecidos.
Semana passada a Marília Gabriela disse numa entrevista que o amor, assim como a batata, também acaba. Acaba? Não que eu saiba. Eu escolhi não morrer, nem matar, mas transformar ele em rima, dentro de mim.
Hoje o que existe no meu peito é um buraco. Um tiro de 12, de saudades de coisas que foram e não vão se repetir. Alguém disse que a dor é certa, mas o sofrimento é opção. Mesmo nos momentos de dor certa, se me perguntarem “como vai?”, vou bem, ça va, ça marche. Mas é um jogo de esconde-esconde, cache-cache, enquanto o tempo se encarrega de fechar buracos e fazer nascerem as batatas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Reset. Sabe aquele botãozinho escondidinho que todo aparelho tem? Ele é sempre mais fundo, é sempre fora de alcance. E isso tudo por um motivo certo: se você apertar, não tem volta.

Apaga tudo.